“Quando nós falamos tagarelando
E escrevemos mal ortografado
Quando nós cantamos desafinando
E dançamos descompassado
Quando nós pintamos borrando
E desenhamos enviesado
Não é porque estamos errando
É porque não fomos colonizados.”
NEGO BISPO
Durante o vigésimo Encontro da ANPOF (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia), realizado entre 30 de setembro e 4 de outubro em Recife/PE, foi notória e significativa a presença do pensador quilombola contracolonial piauiense Antônio Nego Bispo dos Santos (1959-2023).
Ainda que ausente do mundo dos vivos-em-carne-e-osso desde 2023, Nego Bispo está em pleno processo de devir-ancestral. Continua, de certa forma, presente entre nós como uma espécie de filósofo-griô e de intelectual orgânico. Vem sendo crescentemente reconhecido por uma parcela do mundo acadêmico como uma voz afropindorâmica e cosmofílica que ajuda a universidade a superar suas travas e cegueiras eurocêntricas e monoteístas.
Insurgindo-se contra as várias formas de racismo epistêmico e de cancelamento dos saberes gerados em comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas etc., Nego Bispo e seus discípulos e estudiosos são de fato uma força de renovação intelectual no Brasil – segundo a ANPOF, o autor de A Terra Dá, A Terra Quer pode ser considerado um “grande expoente da Filosofia Contemporânea Brasileira” (1).
Através da mesa “Um diversal ancestral encantado”, que contou com a Profa. Dra. Adilbênia Machado (UFRRJ), o Prof. Dr. Eduardo Oliveira (UFBA) e o do mestre de capoeira, músico e compositor popular Malungo Jundiá, e também através de evocações de seu pensamento feitas por Renato Noguera na mesa Filosofia e Raça, Nego Bispo esteve em posição de muito destaque no evento. O que me conduziu a pensar que este Encontrão da ANPOF, sob a presidência de Érico Andrade (UFPE), foi a mais aquilombada de suas edições.
Como um manifesto em forma de evento acadêmico em que se proclama: jamais a filosofia será considerada novamente como “notas de rodapé a Platão” ou como comentários doutos sobre o que escreveram homens brancos europeus que já morreram faz séculos. A ANPOF fez assim um movimento aquilombador do pensamento e integrador das artes – já que a mesa citada contou com música ao vivo puxada pelo Malungo Jundiá, no berimbau e no gogó, dando corpo e voz a letras que confluem com as posturas e pensares do Nego Bispo. Confira na sequência alguns vídeos exclusivos (realizados por Eduardo Carli d’A Casa de Vidro) nesta ocasião e acesse também a nossa biblioteca de ebooks onde abrimos caminhos para quem quiser acessar alguns dos textos mais relevantes desta galáxia:
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Em uma entrevista à Revista Revestrés, Nego Bispo falou:
– A sociedade eurocristã monoteísta está vivendo um desastre, e quem aparece como possibilidade de amenizar essa situação? O pensamento quilombola e indígena. Hoje as mais importantes universidades do Brasil estão chamando os quilombolas e indígenas para discutir cosmologia, modos de vida, contracolonidade. Quem imaginou que, um dia, um lavrador quilombola, Nêgo Bispo, nascido no Piauí, teria um livro, escrito a partir de memórias ancestrais, na ementa de universidades do Brasil? Quem imaginou que um lavrador estivesse fazendo três lives por semana pra discutir confluências, cosmofobia, pensamento circular, biointeração, saberes orgânicos?!? Nesse momento, nós, quilombolas, estamos presentes não como pessoas que devem ser ajudadas, mas como pessoas que ajudam. Hoje nosso modo de vida é referência.” (2)
Vem proliferando eventos universitários que lidam com as contribuições do pensamento negobispeano – a exemplo deste que aconteceu recentemente na Cidade de Goiás: durante o XII Congresso de Ensino, Pesquisa, Extensão e Cultura – Conepec 2024, realizado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), o evento trouxe como tema “A terra dá, a terra quer: territorialidades plurais”: “O tema, homônimo ao livro de Antônio Bispo dos Santos (conhecido como Nêgo Bispo), lançado em 2023, ressalta a importância de se discutir a terra em seu sentido coletivo e como território plural, em que a vida se estabelece como sistema de biointeração e compartilhamento.” (3)
Uma evidência de que o campo das ciências humanas, e dentro desta de áreas como a antropologia e a filosofia, estão levando cada vez mais a sério os saberes-que-vem-de-baixo, é o fato de que a Enciclopédia de Antropologia da FFLCH-USP, no verbete consagrado a Nego Bispo, destaca o conceito de contra-colonização como um dos mais relevantes e contundentes que ele nos propôs:
“O pensamento de Bispo constrói-se a partir da experiência e concepções das comunidades quilombolas e dos movimentos sociais de luta pela terra. Dessa perspectiva, desenvolveu algumas proposições epistemológicas a partir dos saberes tradicionais dos povos ‘afro-pindorâmicos’, segundo a sua expressão para referir-se aos descendentes africanos e indígenas/pindorâmicos em substituição às designações empregadas pelo colonizador. Seu pensamento vem despertando debates dentro e fora da academia, sobretudo a partir do conceito de ‘contra-colonização’, que postula uma relação entre regimes sociopolíticos e cosmológicos. O autor compreende a colonização como um processo etnocêntrico que busca substituir uma cultura pela outra, por meio de práticas de invasão, expropriação e etnocídio. Como sugere o pensador quilombola, o conceito de “contra-colonização” inscreve no processo colonial a ressignificação da matriz cultural dos povos e de suas práticas tradicionais, de modo a ancorar a enunciação e as formas de resistência à colonização. Colonização, quilombos: modos e significações (2015) propõe um novo ponto de vista acerca dos estudos decoloniais, ainda que não dialogue diretamente com essa literatura. A obra, que traz ensaios e poemas, elabora uma perspectiva própria sobre as formações “orgânicas” – como Bispo nomeia esse regime de subjetivação – das comunidades tradicionais, retomando a história da resistência de Palmares, Canudos, Caldeirões e Pau de Colher.” (4)
Fogo!… Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!… Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!… Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!… Queimaram Pau de Colher…
E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.
Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo
Não queimarão a ancestralidade.
(Antônio Bispo dos Santos)
Nego Bispo pensa com uma revolta e uma indignação enraizadas nesta história de massacres colonialistas e abusos de poder do Estado repressivo. Ele filosofa ciente de que queimaram Palmares, e queimaram Canudos, e queimaram Caldeirões, e queimaram Pau de Colher (referência ao “massacre de cerca de mil pessoas da comunidade de Pau de Colher, ocorrido em janeiro de 1938”) – e continuam queimando florestas e biomas, como nos “Dias do Fogo” promovidos pelos agrofascismo entre 2019 e 2024. A ainda assim, das cinzas renasce um Fênix de uma inqueimável ancestralidade.
Em A Terra Dá, A Terra Quer, ele também se coloca como um guerreiro-da-linguagem envolvido numa guerra de denominações. Através de seu tecido verbal, em que traduz saberes ancestrais na linguagem escrita, ele ginga com o verbo, apostando energias no “jogo de contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las” – a exemplo do que faz com a desvalorização crítica que opera com o termo desenvolvimento, propondo em seu lugar o muito mais sábio e salutar envolvimento.
“Certa vez, fui questionado por um pesquisador de Cabo Verde: ‘Como podemos contracolonizar falando a língua do inimigo?’. E respondi: ‘Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las. Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento.
Para enfraquecer o desenvolvimento sustentável, nós trouxemos a biointeração; para a coincidência, trouxemos a confluência; para o saber sintético, o saber orgânico; para o transporte, a transfluência; para o dinheiro (ou a troca), o compartilhamento; para a colonização, a contracolonização… e assim por diante. Ele entendeu esse jogo de palavras: ‘Você tem toda a razão! Vamos botar mais palavras dentro da língua portuguesa. E vamos botar palavras que os próprios eurocolonizadores não têm coragem de falar!’.” (5)
A prática de semear palavras germinantes conduz hoje a um aquilombamento da linguagem que estamos falando nos domínios da Universidade e da Cultura. O próprio Nego Bispo aponta que, apesar de ter se esforçado muito por fazer germinar a palavra biointeração, “a palavra que melhor germinou foi confluência”: “Não tenho dúvida de que a confluência é a energia que está nos movendo para o compartilhamento, para o reconhecimento, para o respeito. Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente – a gente rende. A confluência é uma força que rende, que aumenta, que amplia.” (idem #5, pg. 4)
Confluência foi justamente a palavra germinante que primeiro fez com que eu me interessasse pelo Nego Bispo: desde 2016, A Casa de Vidro, enquanto produtora cultural, realiza o Confluências – Festival de Artes Integradas, com 9 edições realizadas em Goiânia. Ainda que o evento não tenha sido batizado em homenagem a Nego Bispo, que eu desconhecia quando o festival foi criado, depois descobri, através da dica certeira que me deu o camarada André Baleeiro, de que Nego Bispo em suas falas e livros tinha uma compreensão muito assemelhada àquela que nutre o envolvimento do Confluências com o cenário cultural – “quando a gente confluencia a gente rende”, diz Bispo. E nós também pensamos que os agentes culturais, ainda que atuem com diferentes linguagens (a música, o cinema, a poesia, a dança, as artes visuais, a performance etc.), não devem ficar apartados, como rios que correm paralelos e sem encontro, mas só ganham força e expressividade coletiva quando confluem.
A mesa inaugural da ANPOF 2024, ao homenagear “um diversial ancestral encantado”, botou com arretada ousadia a filosofia afrodiaspórica/afropindorâmica no ar e no foco. A entidade suprema da pós em filosofia no Brasil convoca-nos, assim, à beira do fogo da vida, a escutar esta voz telúrica que diz: “nascemos no ventre da terra para aparecermos na ancestralidade.” Mestre do chão, que nos tira de Cucolândia das Nuvens, que nos imuniza contra as ilusões do idealismo, que nos convida a filosofarmos e filosoflorirmos também com cachaça no quengo nos botecos, também nas rodas de baseado de maconheiros, também nos quilombos e aldeias e comunas alternativas que por tempo demais foram alvo do desdém elitista da filosofia douta, oficial, sintética (em oposição a orgânica) e de torre de marfim (em oposição à inclusiva roda de tambor ou de capoeira).
A Profa. Adilbênia foi eloquente ao nos comunicar que só aprendemos ensinando e que “saberes só são perpetuados quando compartilhados”. Nego Bispo encarna esta sabedoria do saber partilhado e da comunhão carnal na rebelião contra todos os horrores, presentes e pretéritos, do colonialismo. Denuncia a violência que há na “invalidação da oralidade” – pois esta, a palavra falada, na gíria de favelas e mocambos, deve ser integrada à formação transversal-confluente em que a escrita acadêmica logocêntrica e pálida não deve fazer-se tirana.
A ANPOF convoca Nego Bispo para nos alertar que conceitos descarnados e abstratos não prestam diante do cataclismo vigente – o tal do Antropoceno, com a Sexta Extinção Massa e a Ebulição Climática – e que precisamos de uma filosofia sobre a terra e seus compartilhantes (multi-espécies) e que saiba: conhecimento só faz sentido se partilhado, e um rio não diminui se conflui com outros rios, mas sim mergulha na fusão com a enxurrada de que é parte e parcela.
“Nem todo morto tá vivo, e nem todo vivo é imortal”, cantou-nos o Malungo Jundiá. Nego Bispo não foi desses vivos que, ao morrer, caiu no esquecimento – este é o significado da tese Nego Bispo se ancestralizou. Nego Bispo virou um desses mortos que estão vivos. Esse morto tá vivíssimo.
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Outubro de 2024
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Publicado em: 12/10/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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